terça-feira, 29 de novembro de 2016

Bem aventurados os puros



“Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus” (Mt 5, 8). Com toda certeza seria temerário tentar escolher alguma das bem-aventuranças para que fosse eleita a maior; assim como seria insensato eleger uma das promessas feitas pelo Senhor neste nobre discurso, visto que todas se correlacionam e emolduram a grande promessa, isto é, a felicidade eterna destinada àqueles que se conformam à vontade salvífica de Deus manifestada em todo o seu poder e misericórdia no Cristo, Filho de Maria.
Não obstante, não seria de tudo estranho que, ao escutar a promessa da visão de Deus feita pelo Senhor aos puros, permitir que venha à memória, quase que instantaneamente, o gemido do salmista que, emprestando sua voz a todos os homens, clama: “Como a corça anseia pelas águas vivas, assim minha alma suspira por vós, ó meu Deus. Minha alma tem sede de Deus, do Deus vivo; quando terei a alegria de ver a face de Deus?” (Sl 41, 2-3).

A virtude da pureza – contrária a toda mancha de pecado que insista em macular a alma humana criada à imagem e semelhança do Deus Santíssimo – permite ao homem redimido entrar em contato com o Divino em toda a sua profundidade. Como sabemos, Cristo não veio para os sãos, mas para os pecadores adoentados pelo mal (cf. Lc 5, 32), o que em absoluto não pode querer significar uma adesão por parte de Deus à realidade objetivamente má do pecado, que tira a liberdade do homem e o lança nas profundezas da escuridão, impedindo-o de ser íntimo de Deus, como vemos com clareza na dificuldade de amor instaurada pelo pecado original de Adão e Eva (cf. Gn 3, 1-13). Após a queda, enganados pelo inimigo de Deus, “a antiga serpente, que é o Diabo e Satanás” (Ap 12, 9), os primeiros pais têm seus “olhos abertos” podendo agora ver que estavam nus, ou seja, tem sua inocência original deteriorada e permitem que sua visão não seja mais guiada pelo espírito nem pela natureza boa da consciência dada por Deus, mas sim pela cobiça e pela fomite pecati (fome do pecado) que se instaura na vida e na história humana a partir de então. Em sua Teologia do Corpo, São João Paulo II assevera a este respeito: “O homem e a mulher, depois do pecado de origem, perderam a graça da inocência original. A descoberta do significado esponsal do corpo deixará de ser para eles simples realidade da revelação e da graça” (Catequese de 20 de fevereiro de 1980). Como se torna claro, esta abertura dos olhos de Adão e Eva não lhes permite ver como Deus os via e sim como o demônio os via, quais competidores maliciosos, desejosos de conquistar para si o bem possuído pelo outro. Além de tudo isso, este abrir os olhos do primitivo casal lhes impulsiona na direção da pior de todas as cegueiras: eles se ocultam do olhar de Deus. Esta é a grande marca do pecado na vida do ser humano, que se abstrai da presença de Deus, que se encaminha por veredas sempre mais distantes, tornando-se um estrangeiro na casa do Senhor, sempre disposto a conquistar seus objetivos à revelia do que dispõe em sua bondade o Deus Providente e Misericordioso. Saindo da luz verdadeira, o homem cai nas trevas do mal e do pecado.

O homem pecador encontra em Deus seu fim último e primeiro princípio, convencendo-se, pela própria natureza voltada para o Senhor, que apenas a visão de Deus pode saciar a fome que se instaurou em seu ser após o pecado, pois em Deus fomos criados e para ele vivemos. Neste sentido, torna-se necessário que os olhos do homem sejam abertos de uma maneira nova, transformadora. Este abrir os olhos apenas pode ser feito pelo Senhor, que possui a luz santíssima e puríssima “que ilumina todo homem” (cf. Jo 1, 9) para que vejam. No Evangelho de Lucas (18, 35-43) vemos a cena da cura de um cego à beira do caminho operada por Jesus, o qual admite realizar o milagre após a grande insistência daquele homem. O Senhor o chama e lhe pergunta o que este deseja, obtendo como resposta as palavras “Que eu veja”. Após a cura realizada o texto evangélico termina dizendo que o cego “imediatamente ficou vendo e seguia a Jesus, glorificando a Deus. Presenciando isto, todo o povo deu glória a Deus”. Quando nossos olhos são abertos, não pelo tentador mas por Deus, contemplamos a verdade, e ao invés de fugir de Deus, o seguimos de perto, felizes pelo dom da vida que nos é dada em toda a sua grandeza.

Ser puro se torna, então, muito mais que evitar pecados contra a castidade, como geralmente se procura informar, mas consiste em ser alguém que procura ver a Deus, em todo o seu esplendor. Ser puro é deixar-se penetrar pelo imenso amor de Deus e não desejar outra coisa que poder contemplar o seu rosto eternamente, sem nunca desviar o olhar e, para tanto, afastar para bem longe tudo o que possa impedir que isso seja realidade, assim como ensina o Senhor Jesus, quando nos exorta a lançar para longe aquilo que nos leva a pecar e nos afasta de Deus (cf. Mt 5, 29-30). “Ó santa pureza, és o templo do Espírito Santo, a vida dos Anjos e a coroa dos Santos!” (Santo Atanásio, Tratado sobre a virgindade).

Se quisermos ser puros e contemplarmos sempre a Deus, imitemos a Santíssima Virgem Maria, pois ela é a Mãe do Puro Amor, a humilde serva de Deus, para quem o Altíssimo voltou seu olhar amoroso com toda a bondade, e a escolheu, qual joia rara, para ornar de forma totalmente singular a história da salvação da humanidade. “Desejaria que o mundo inteiro vos reconhecesse e confessasse como aquela formosa aurora, sempre adornada da divina luz; como aquela arca eleita de salvação, livre do comum naufrágio do pecado; como aquela perfeita e imaculada pomba, qual vos declarou vosso divino Esposo; como aquele jardim fechado, que foi as delícias de Deus; como aquela fonte selada, na qual o inimigo jamais pôde entrar para turvá-la; como aquele cândido lírio, finalmente, que, brotando entre os espinhos dos filhos de Adão, enquanto todos nascem manchados da culpa e inimigos de Deus, vós nascestes pura e imaculada, amiga de vosso Criador”. (Santo Afonso de Ligório, Glórias de Maria, Tr. I, pt. 3º, cap. II).

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